• Gabryella Garcia
Atualizado em
Homens trans celebram a paternidade no Dia dos Pais (Foto: Arquivo Pessoal/Reprodução)

Homens trans celebram a paternidade no Dia dos Pais (Foto: Arquivo Pessoal/Reprodução)

Neste dia 14 de agosto é celebrado o Dia dos Pais e, ainda hoje, no ano de 2022, a paternidade pode parecer algo irreal ou até mesmo impossível para muitos homens trans e pessoas transmasculinas. Durante anos a sociedade negou e marginalizou a existência desses corpos, os privando de afeto e até mesmo negando a possibilidade de uma construção familiar. A realidade, entretanto, vem mudando ano após ano, com pessoas trans conquistando cada vez mais espaço e direitos, inclusive o de uma família.

A pluralidade é uma realidade em nossa sociedade e não há uma pessoa que seja exatamente igual a outra. Corpos, pensamentos, convicções e até mesmo gostos. Tudo é diferente e cada pessoa é única. Inegavelmente há também diferentes tipos de pais. Um desses recortes de pais é o de pais transgêneros – inclusive diferentes entre si –, que diariamente lutam contra o preconceito e pelo direito de simplesmente amarem seus próprios filhos e filhas.

Noah Scheffel, de 35 anos, é um homem trans, analista de tecnologia da informação e empreendedor social que vive em Porto Alegre e é pai de duas meninas. Na verdade, Noah é pai de Helena, de 6 anos, e mãe de Anita, de 9 anos, de quem se tornou mãe antes mesmo de fazer sua transição.

"Eu sou mãe de uma e pai de outra. Anita eu gestacionei e dei à luz antes da transição social e ela tem um pai presente na vida dela. Sempre fiz papel de mãe e aí desconstruí que mãe tem gênero e pai tem gênero. A Helena chegou na minha vida quando tinha quase dois anos de idade e a conheci porque é filha biológica da minha ex-esposa. Ela não tinha registro de pai e era uma criança que eu me via muito nela, com uma conexão muito forte. Meu relacionamento com a mãe dela evoluiu rapidamente e começamos a morar juntos, então pensei 'por que não registrar no papel o que já fazia de parentalidade?'", conta a Marie Claire.

"Helena me chama de pai e Anita me chama de mãe e sou a mesma pessoa. É importante poder desconstruir papéis impostos que o homem precisa ser isso e a mulher aquilo. Dá para ser os dois papéis em uma mesma figura"

Noah Scheffel

Anita, inclusive, foi quem acabou "batizando" Noah. Ele diz que seu maior medo era perder o amor da filha no início de sua transição. A aceitação, no entanto, foi melhor do que ele poderia imaginar.

"Meu medo era ela entender que tinha uma mãe que era homem. Foi uma das últimas pessoas que contei porque tinha medo da reação e não queria perder ela. Já tinha falado no trabalho, para amigos e até para o pai dela, precisava falar com ela. Um dia a peguei na escolinha, estacionei o carro e perguntei 'Anita, tu acha que a mãe parece mais menino ou menina?', e na época eu não tinha passado por nenhum processo, apesar de uma expressão de gênero lida como mais masculina. Ela respondeu com bastante cuidado que parecia mais com menino e eu disse que a mãe era um menino enquanto pensava 'ferrou, vou perder a guarda e ela não vai entender'. Aí ela respondeu que eu precisava de um nome de menino e perguntou qual nome eu teria dado para ela se ela fosse um menino e eu respondi Noah. Ela respondeu que me daria seu nome de menino e desde então sou Noah, a mãe dela."

O empreendedor social de Porto Alegre também destaca que o sonho de uma configuração familiar como a que possui atualmente sempre pareceu algo distante. Hoje, apesar de enxergar que o amor é capaz de transpor qualquer barreira, Noah reconhece que a sociedade tenta dificultar isso de muitas maneiras.

Noah Scheffel é mãe de Anita (esquerda) e pai de Helena (direita) (Foto: Arquivo Pessoal)

Noah Scheffel é mãe de Anita (esquerda) e pai de Helena (direita) (Foto: Arquivo Pessoal)

"A sociedade nega que possamos ter uma construção familiar ou afetiva e possamos ter filhos e desempenhar esse papel. Eu me colocava em um lugar de não possibilidade enquanto pessoa trans e poder ter esse acesso e ele ser acolhedor como é, no caso da minha filha que me chama de pai desde o primeiro dia, é resgatar um sonho possível que um dia achei que não poderia sonhar. O amor é mais importante do que qualquer outra definição e existindo esse amor, respeito e acolhimento, não há preconceito no mundo que possa romper essa família que a gente constituiu".

Noah também conta que a luta contra a transfobia é diária em sua vida, e isso se reflete na questão de ser um homem trans que é pai também. A maioria dos ataques que recebe acabam sendo de forma virtual, e ele prefere não entrar em discussões, simplesmente apagando os comentários preconceituosos e bloqueando os chamados "haters". Ele também afirma que conversa diariamente com suas filhas sobre as temáticas de inclusão e combate ao preconceito.

"Falo sobre esses assuntos em todas as oportunidades, seja na rua, assistindo algum desenho ou em em algum jogo que só tenha personagens brancos. Além de terem toda uma convivência com pessoas fora do padrão tido como normal, também aproveito trabalhos de escola que sejam mais normativos de uma forma lúdica. Elas são de uma nova geração que tem um potencial incrível para serem melhores do que a gente ao invés de seguirem o mesmo fluxo que seguimos".

"Sempre senti solidão parental enquanto pessoa trans. Tentava encontrar maneiras e não encontrava pessoas trans que passaram por isso, então foi solitário. É importante outro homem trans me ver e enxergar que existe sim essa configuração familiar"

Noah Scheffel

"Ser pai é amar, cuidar e ser responsável"

Thammy Miranda, de 39 anos, é pai de Bento, de apenas dois anos. Sua paternidade, entretanto, se deu de uma maneira distinta das formas como Noah se tornou pai e mãe. Andressa Ferreira, mulher de Thammy, optou pela inseminação para que pudessem ter seu primeiro filho.

Por ser uma figura pública, Thammy constantemente acaba sendo alvo de ataques transfóbicos. No ano de 2020, ao protagonizar uma campanha de Dia dos Pais da marca de cosméticos Natura, ele recebeu uma série de mensagens de ódio que diziam, por exemplo, que ele não era homem e nunca poderia ser pai.

Thammy Miranda sonha em ter mais filhos (Foto: Arquivo Pessoal)

Thammy Miranda sonha em ter mais filhos (Foto: Arquivo Pessoal)

Para essas pessoas, Thammy prefere nem responder, focando naquilo que ele considera ser pai de verdade e exercendo seu papel com muito amor. "Não lido com esses ataques, eu simplesmente ignoro e os haters ficam falando sozinhos na internet", diz à Marie Claire.

Ele conta que sempre teve o sonho de ser pai, antes mesmo de iniciar seu processo de transição, mas que gestar uma criança nunca passou pela sua cabeça ou esteve em seus planos. Hoje, curtindo cada momento e fase de Bento, ele confessa que pretende ter mais filhos. "Não depende só de mim, depende da Andressa também, mas eu quero sim. A gente conversa disso às vezes e pensa que daqui uns dois anos talvez seja o momento ideal".

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Thammy também fez questão de destacar que apenas no ano de 2022 mais de 56 mil crianças foram registradas sem o nome do pai no Brasil, e por isso, entende que ser pai é amar, cuidar, ser responsável pela educação de um outro ser e mais do que isso, assumir suas obrigações.

"É uma emoção que só vivendo para saber como é. Eu fiquei muito feliz e sou muito feliz até hoje, é o melhor presente que Deus me deu"

Thammy Miranda

"Julgam tanto quem é pai ou quem não é pai mas não ficam indignados com os mais de 56 mil pais que não registraram seus filhos só em 2022. Eu não apenas sou o pai do meu filho como eu crio, dou amor, carinho, respeito e educação. Enquanto isso tem muitos que não assumem ou quando assumem não participam da criação. Ser pai para mim é assumir, participar, dar carinho, respeito, educação e tudo o que uma criança precisa".

"Paternidade para um homem trans é resistência

O músico Lourenzo Gabriel Duvale Lima, conhecido como Aqualien, tem 24 anos e é pai do pequeno Apolo, de apenas 8 meses. Apolo é fruto de um relacionamento transcentrado e também é filho da travesti Isis Broken. Lourenzo gestou seu filho e conta que todo esse processo foi muito violento e desgastante e, devido às transfobias que sofria quando procurava atendimento médico, ficou 7 meses sem realizar qualquer exame pré-natal. Ele também diz que foi pego de surpresa com a gravidez, pois achava não ser possível devido ao seu processo de hormonização.

"Foi sem planejamento e eu nunca tive muita vontade de ser pai. Já tinha conversado com a Isis mas de maneira bem superficial e nem esperava que pudesse acontecer porque tomava hormônios há três anos e achava meio impossível. Aconteceu de forma inesperada e também foi um processo para aceitar a minha gestação. No final entendi que meu corpo também pode gerar uma vida e isso tem que ser normalizado", diz à Marie Claire.

Lourenzo enxerga a paternidade como um ato de resistência (Foto: Arquivo Pessoal)

Lourenzo enxerga a paternidade como um ato de resistência (Foto: Arquivo Pessoal)

Esse processo de aceitação da gestação, entretanto, não foi nada fácil para Lourenzo. Ele conta que sofreu com questões de disforia, pois interrompeu o uso da testosterona. O próprio processo de gerar uma vida, aliado ao não uso dos hormônios masculinos, fez com que seus seios crescessem e houvesse um grande retrocesso no processo de hormonização.

"Foi difícil lidar e aceitar meu corpo porque eu não me enxergava. Não conseguia me entregar para aquele momento e fui desconstruindo isso ao longo da gestação e me aceitando. Entendi que não era errado eu estar gestando e era sim possível. Tive que me reconectar comigo mesmo e entender meu corpo de outra maneira. Acho que foi uma questão mais por conta das pessoas de fora do que comigo mesmo, por conta do que a sociedade fala e das agressões. Quando entendi que aquilo não era um problema para mim, e sim para os outros, consegui respeitar e aceitar melhor".

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Hoje, depois de todo esse processo, Lourenzo tenta enxergar a paternidade trans para além de toda a romantização que a paternidade ou a gestação envolvem. "Além de toda a romantização, a paternidade para mim significa muita resistência. Com tudo o que passei tive que ser muito forte para me afirmar como pai. Resistência é a palavra ideal, é uma questão de ter que me validar a todo momento e dizer para o mundo que sou pai".

Depois do nascimento de Apolo, Lourenzo não pensa em ser pai novamente mesmo que hoje tenha outra visão sobre sua gestação. Ele prefere focar na criação de seu filho e sem dúvidas, dando total liberdade e apoiando todas as futuras escolhas e decisões do pequeno Apolo.

"Não há palavras para descrever o sentimento da paternidade, é gratidão. Quando Apolo nasceu eu só chorava e foi como se fosse um respiro depois de tantas coisas que passei com ele na minha barriga. Isso mostra que no final, mesmo com tudo isso, o amor venceu"

Lourenzo Duvale Lima

"Hoje vemos muitos pais querendo impor uma masculinidade, um jeito de ser que o homem não pode chorar e eu quero dar liberdade para ele ser quem é e se expressar da forma que é. Mostrar que pode ser frágil e fugir da questão da binariedade cisgênera. Quero ensinar que ele pode ser múltiplo e quem ele quiser. Sempre terá total apoio do pai dele para o que for fazer da vida dele", finaliza.